terça-feira, 21 de junho de 2011

O QUE VOCÊ CRIA?


A bagagem para Recife sofreu alterações depois da atividade proposta pelo Lubi (XIX de Teatro – SP) que convidamos para acompanhar os encontros presenciais e somar olhares, experiências, sonhos e medos nesse encontro de pensar grupalidade.
Cada um de nós deveria preparar um presente para o primeiro dia de atividade. O tal presente deveria conter algo para dizer, algo para sentir, algo para vestir ou portar e algo para fazer. Eu achei a provocação excitante! Acordei mais cedo para ir buscar terra num terreno baldio do bairro onde moro, um livro de poemas do Nicolas Behr (poeta que desfia Brasília em versos), uma correntinha com do Athos Bulcão, um anjinho que guardava meus livros e uma ampulheta.
Ninguém sabia o que poderia receber como presente, não havia remetente ou destinatário nos pacotes.
O meu presente estava numa sacola de papel. Depois de percorrer um trajeto surpresa para encontrá-lo (essa é uma outra história), lá estava ele, a minha espera num posto de atendimento ao turista. Alegre, fui descobrir o que me aguardava: um livro Morte e Vida Severina do João Cabral de Melo Neto (acho lindo); um vidrinho que guardava um pouco de mangue e uma plantinha bem verde e miúda; um chapeuzinho sem abas; alguns chaveiros de símbolos de Recife; outro vidro menor como aqueles de perfume que tinha água dentro (do mangue? Do rio? Do mar?)...
- Espanto!
- Medo!
Eis que na sacola havia um caranguejo vivo, numa caixinha de plástico transparente com alguns furinhos para entrar ar. Ele não tinha muito espaço. Ele se mexia muito. Na verdade eu nem como caranguejo e tenho certa repulsa a bichos como esse e aranhas, cobras...essas coisas.
O que fazer? Como realizar algo com aqueles presentes? Gosto de dar nome as coisas. Chamei a plantinha do mangue de Vitória e o caranguejo de Feliciano (nome do meu pai). Sentei no chão, ali no pátio da igreja, um espaço cheio de lojas, vendedores ambulantes. Comecei a ler o livro pro Feliciano. Sem nenhuma intenção muito clara, além daquela de ler um livro para outro ser vivo.
Aos poucos pessoas passavam (parece que a intervenção precisa de um tempo para se instaurar), olhavam, riam, perguntas, comentários:
- Você estuda caranguejo?
- Você está lendo o que pra ele?
- Você sabe como pega caranguejo?
- Melhor você soltar pra não ter problema com o Ibama.
As interações eram muito afetuosas, o que até me surpreendeu. Um senhor me olhou e disse:
- Você cria caranguejo?
- É um presente que eu ganhei.
- Meu irmão cria uma jibóia, mas tem licença do Ibama.
- E o senhor, cria o que?
- Eu crio meus filhos!
Ele se foi e fiquei ali algum tempo. Tudo me parecia tão especial que seria capaz de ficar horas lendo o João Cabral para o Feliciano.
Um pouco abaixo tinha um vendedor de CDs e DVDs piratas, aqueles que usam uma bicicleta com aquela caixa de som nada discreta. As músicas se repetiam (será que aquela trilha era pra mim?) A primeira era um forró dizendo que em Brasília estava tendo um zum, zum, zum, para homenagear Luiz Gonzaga. A segunda canção falava de poluição “o rio não tinha mais peixe”. Ler Morte e Vida para um caranguejo encurralado fala de quê?
Por último pararam para conversar comigo duas moças que riram, comentaram que já tinham pegado caranguejo e um jovem (acho que era entregador de bebidas). Ele me olhou docemente, se agachou perto de mim, colocou a mão no meu ombro:
- Você gosta de ler pra ele?
- Gosto, eu ganhei de presente, Feliciano.
- Ali em baixo, tem uma praça, tem banco, você podia ir lá, sentar no banco e ficar lendo o livro pra ele. Esse chão aqui tá sujo, não praça vai ser melhor, vai lá.
Despedi-me e ingenuamente pensava que ali teria acabado a experiência. Experiência acaba? Pra onde vai isso que eu vivi?
Não consegui mais tirar a imagem daquele caranguejo da cabeça. Gente, e para piorar a situação, ainda por cima eu sou canceriano! Sabe quando um fato ou uma imagem se torna o ícone ou quase um portal de mil outras questões? Quando simboliza todas as crises?
Estou encurralado numa vitrine? Me falta ar? As vezes seu sonho vira prisão? No grupo ando me sentindo como aquele caranguejo? O que me cerceia?
Tudo naquele “presente” que eu tinha recebido estava relacionado a algo fora do seu habitat natural. Tudo estava “posto” em objeto transparente para ser visto. Quase tudo era matéria viva, natural. E ali, versos que contavam a história de um homem que segue o rio em busca da cidade, de uma vida melhor. Encontra tanta desgraça. Vive o nascimento do seu filho – novamente a criação.
Como estamos “criando” esse grupo? Se o grupo não é a caixa ele poderia ser o caranguejo? O grupo está sem ar? Está se remexendo para não morrer? Está na vitrine? A sua falta de ar, de espaço é assistida?
Lembro-me que nas cidades do interior usam uma expressão do tipo “a cadela deu cria” ou “tem que cuidar da cria”. Esse “cria” está relacionado a filho, filhote, a algo que nasceu – “uma vida explodida”.
E quando você acrescenta o “r” no final dessa palavra? Criar seria cuidar do que nasceu? Criar é cuidar da cria? O que é cuidar? E se o que nós entendemos como cuidar for muito diferente? E quando você já não sabe mais como cuidar? E quando você se sente encurralado? Sem vontade? Quando parece ter perdido o sentido? Quando não sabe o caminho? Quando está vazio? Cansado? Quando pensa em parar?
Com a ajuda do Lucas, autor do “presente-esfinge”, soltei o Feliciano no mangue. Acho que ele já sabe se cuidar!
PS.: Lucas, têm presentes que podem mudar uma vida, assim como um encontro. Agradecido!

 

Um comentário:

  1. olá galera! amei o blog de vcs o site tbm! de mais! adoro teatro! um dia ainda estudo! enquanto isso torço por vcs aí viu! não moro em Brasilia ,mas já morei muito tempo! amo essa cidade! pretendo voltar ! rsrsrsrs bjos a vcs! incrível! atté! Juliana!

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